O dia internacional da Síndrome de Down, 21 de março, colocou na agenda de debates o problema da exclusão social da chamada pessoa com deficiência. Na prática, a luta pela inclusão no sistema regular de ensino e no mercado trabalho, que está a todo vapor em todo o mundo, vem questionando um traço problemático da cultura moderna: o de tratar toda diferença como um problema a ser equacionado ou mesmo negligenciado e abandonado à sua própria sorte.
Outra visão, não menos negativa, é ver esse “diferente” como incapacitado para caminhar sobre seus próprios pés e, portanto, passível apenas de cuidados e proteção, além de não poucas vezes tratado como um perigo a ser isolado do convívio social. Tal perspectiva nos faz lembrar do “mito dos leitos de Procustro”. Segundo a mitologia grega, Procustro obrigava todos os viajantes, aprisionados entre Mégara e Atenas, a deitarem sobre dois leitos com tamanhos padronizados. Aqueles que ultrapassavam a medida estabelecida tinham parte de seu corpo decepado e os que não a atingiam eram violentamente esticados. Esse exemplo serve para nos mostrar que em todos os períodos da História desenvolveram-se padrões e modelos dominantes de vida.
Foi no período conhecido como modernidade, entretanto, que esse processo excludente se institucionalizou. Para que o ideal de produção em série pudesse se concretizar, com a rapidez esperada pelos novos detentores do poder, era preciso estabelecer o lugar de cada um nesse vertiginoso crescimento do capitalismo. Desde pelo menos o século XVI, um modelo de vida burguês vai se delineando no que se habituou a chamar de processo civilizatório. Nesse contexto, aqueles que não se adequassem a esse novo leito de Procustro foram classificados como degenerados de um sistema, que sempre se pautou pelas idéias de racionalidade e homogeneização.
No início do atual sistema, não havia sequer a distinção entre a hoje categorizada como deficiência e a doença mental. Com poucas exceções, entre elas os surdos e cegos da elite burguesa e os oriundos da nobreza, que tinham um certo acesso à educação especial, todos os outros eram jogados nos chamados asilos correcionais ou em hospícios e prisões. Os posteriormente rotulados como “deficientes mentais” foram concebidos, na maioria das vezes, como incapazes de aprender e de se adaptarem às exigências do desenvolvimento industrial e do mercado de trabalho, além de serem vistos muitas vezes como perturbadores da ordem social.
Esse total desprezo só começa a mudar em meados do século XIX, quando a educação especial se estende à hoje chamada pessoa com deficiência intelectual. No Brasil, só no início do século XX que essa instituição começou de fato a sair do âmbito filantrópico-assistencial. Por outro lado, o modelo estabelecido passou a ser o clínico, ampliando-se o estigma de que deficiência é doença passível ou não de cura.
É importante descrever todo esse processo excludente para mostrar que a idéia de inclusão, na História da humanidade, é bastante recente. Na Europa e nos EUA essa discussão se remete ao fim da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, ela ganha peso com a Constituição Federal de 1988 e com a assinatura de declarações, como a de Salamanca (Espanha), que propõe a inclusão escolar.
Outras conquistas sucederam-se, sobretudo a partir da luta de movimentos de pais e educadores, mas ainda temos muito por fazer. Isso porque, além da não compreensão e mesmo resistência de parte da sociedade e do próprio poder público, há os que confundem incluir com a necessidade de adequação daquele que é visto negativamente como diferente a um suposto modelo de normalidade. E só dessa forma se candidatar a entrar para o seleto clube dos “iguais”, podendo significar a reprodução, mesmo que de forma sutil, de um passado de exclusões.
Como bem disse o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, é importante lutar pela igualdade quando a diferença nos inferioriza, mas temos que lutar pelo direito à diferença quando a igualdade nos descaracteriza. É preciso então romper com o estigma de que de um lado estão os “iguais” e de outro os “diferentes”. Nunca é demais lembrar também que vivemos em um sistema eminentemente excludente e seletivo. E que a escola tradicional foi criada, pelo modelo dominante, para lidar com uma fictícia homogeneidade e não com a heterogeneidade, com as singularidades inerentes a cada ser humano. O capitalismo, por sua vez, tende a classificar cada pessoa para dizer qual é seu papel hierárquico em seus tentáculos, selecionando quem pode ou não ser integrado a ele.
Segundo o educador popular e pernambucano, Paulo Freire, incluir não é colocar alguém, que está supostamente “à margem de”, para dentro de uma sociedade aparentemente estática e que não necessita de transformação. Temos, ao contrário, que aprender a olhar as diferenças, transformando nossos próprios preconceitos e desconstruindo uma cultura histórica recheada de estigmatizações. Afinal, somos todos diferentes, cada qual com seus limites e potencialidades, além de iguais em direitos, mesmo que essa lei ainda esteja apenas no papel.
Guga Dorea, Andrea Paes Alberico, Carlos Alberto Cordovano Vieira, Marietta Sampaio e Thomaz Ferreira Jensen, do Grupo de São Paulo – um grupo de 12 pessoas que se revezam na redação e revisão coletiva dos artigos de análise de Contexto Internacional do Boletim Rede, editado pelo Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, de Petrópolis, RJ.
Contato: gruposp@correiocidadania.com.br
Artigo publicado na edição de abril de 2009 do Boletim Rede.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/3279/9/