As questões – difíceis – relacionadas com o envelhecimento dos pais de pessoas com deficiência intelectual e de seus filhos, que sempre foram objeto de sua grande preocupação, não são coisa que vem sendo estudada apenas hoje, novembro de 2008, e sim remontam a décadas passadas como a de oitenta, em que a organização mundial de famílias, hoje conhecida como Inclusion International, então Liga Inernacional, já fazia estudos sobre o futuro das pessoas com deficiência intelectual quando envelhecessem e não pudessem mais contar com o apoio direto dos pais, dos irmãos, ou do que sobrara da família…
A longevidade das pessoas, hoje um fato universal, pois há muitas pessoas em numerosos países com idade por volta ou superior a noventa anos, fez com que em 2008 estas preocupações se aguçassem e isso resultou na formação de Grupos de Estudo do Envelhecimento em S.Paulo, com a colaboração da sociedade civil de um lado e de organizações ligadas à deficiência e Poder Público de outro.
O texto que reproduzimos, que nos toca profundamente por estarmos exatamente enquadrados nessa condição de pais “quase” na situação de não poder mais dar ajuda direta a nosso filho com deficiência intelectual e com redução de mobilidade grave, é de autoria de um país francês que nos visitou em Congresso Mundial no Rio de Janeiro em 1986, e foi traduzido magnificamente pela companheira e amiga Ruth da Silva Telles, nossa parceira na fundação da APAE de São Paulo em 1960, e uma das grandes incentivadoras do movimento pró residências para pessoas com deficiência intelectual e, evidentemente, do estudo das condições das famílias que envelhecem junto com os filhos. Ruth é uma dessas mães, raras, que se preocuparam com a velhice e seus agravos quando o filho, Henrique, .estava em plena juventude.
Vamos ao que nos diz o companheiro pai francês Jacques Henry:
“ Ser pai e mãe de uma criança deficiente intelectual é enfrentar durante toda a vida dificuldades específicas, acrescentadas àquelas comuns a todos os pais. No decorrer dos anos essas dificuldades evoluem, tomando aspectos e dimensão particular com o peso dos anos sobre os ombros. Os problemas giram em torno de dois eixos: como continuar a encará-los, e o que acontecerá quando não estivermos mais aqui?
“Esta inquietação é certamente generalizada, mas se reveste de aspectos decorrentes dos sistemas de vida, dos tipos de civilização, da riqueza do país, e da importância da deficiência. Viver em um meio urbano ou rural, em um país do ocidente ou em um país do terceiro mundo, subentende convivência e ambientes bem diferenciados, para que nosso questionamento seja respondido. Ter um filho com deficiência leve ou deficiência muito profunda coloca problemas diferentes, ainda que os mais agudos não estejam obrigatoriamente ligados ao grau de deficiência.
“Como podemos definir os pais idosos, ou que envelhecem? Para simplificar, admitamos que se entra nessa categoria no início da Terceira Idade, isto é, por volta dos 60 anos, ainda que em certos casos a saúde deficiente ou uma deficiência dos próprios pais coloque os nossos problemas prematuramente.
“O envelhecimento, em princípio para pais de um adulto ou de um adolescente – representa o fato de não mais contar com a ajuda de seus próprios pais, muito velhos ou já falecidos, nem dos outros filhos que já se afastaram – é de repente se encontrar só, sem o marido ou a esposa. É também atingir a idade da aposentadoria, tendo como corolário uma situação material empobrecida, que para muitos não permite o pagamento de um ajudante, ainda que suas forças diminuam. Que fazer então face aos esforços físicos que um deficiente exige sempre, mesmo quando ele freqüenta uma instituição, mas sobretudo quando ele permanece no lar e mais ainda se for o caso de um deficiente grave, cuja mobilidade é reduzida ou praticamente inexistente. Todos nós conhecemos mães e pais que não conseguem mais carregar seu filho adulto, que se tornou muito pesado, considerando-se que seu peso real, multiplicado pela sua inércia, o torna ainda mais pesado e, quando os pais ainda o conseguem, continuam inquietos e angustiados em relação ao futuro. Muitos enfim “ ficam com a cabeça alterada” e não apresentam mais condições de assegurar o que quer que seja para seu filho.
“Mesmo que alguns pais desejem manter o filho consigo o maior tempo possível, a maioria gostaria de encontrar um lugar que pudesse acolhê-lo. Infelizmente, tais lugares são poucos e insuficiente, sobretudo para os deficientes graves, e as dificuldades econômicas atuais não favorecem novas instalações. As buscas infrutíferas são fonte de outras preocupações e, na medida em que o tempo passa, delineia-se no horizonte a perspectiva do hospital psiquiátrico na falta de instituições adequadas.
“A situação certamente é menos dramática quando a deficiência do filho é menos graves, mas nem por isso as dificuldades e inquietações são menos reais. O que acontecerá no futuro quando a mobilidade dos pais não lhes permitir mais acompanhar o filho que não sabe andar sozinho, ou de ir buscá-lo para passar um fim de semana em casa, ou mesmo visitá-lo onde ele estiver morando; tais reencontros familiares vão se espaçando até que terminam.
Quando a deficiência é leve, permitindo mesmo ao adulto viver só, ou levando vida de casal com um/uma companheira, a autonomia não é completa e a “bóia salva vidas” fornecida pelos pais será sempre necessária. Mas o que acontecerá se essa “bóia” se esvaziar? E se os pais tiverem que assumir a educação de um netinho, filho desse casal, o que estará reservado para essa criança?
Com a idade a deficiências muitas vezes apresenta uma incompatibilidade de gênio em relação à família, uma intolerância à excessiva proteção materna, e um desejo de viver de forma diferente. Omo responder a essa evolução?Como não se inquietar ainda que seja o símbolo de uma certa autonomia?
O envelhecimento dos pais é também o do filho deficiente e, muitas vezes, de forma mais rápida do que para os adultos em geral pois, se conservam uma idade mental jovem, a idade física e fisiológica caminha mais rápido que a imagem legal. Terá ele condições de se manter num emprego, fator preponderante de desenvolvimento para muitos? Quando ele atingir a idade da aposentadoria, quais serão seus recursos, ser-lhe-á permitido permanecer com seus amigos no estabelecimento que o acolhe, ou será obrigado a se mudar e então como sofrerá tal traumatismo? Se sua saúde se deteriora, se sua autonomia diminui, se seu equilíbrio mental se perturba, terá ele condições de viver com a família ou no estabelecimento que o acolha?
“A regressão é tal que nem sempre são os pais que morrem primeiro, mas o filho querido a quem doaram o melhor de si mesmos. Então tudo desaba mesmo se a obsessão do “depois de nós” desapareça. Esta obsessão do “depois de nós” além das preocupações cotidianas, vai minando o fim de nossas vidas, desesperando alguns de nós.
“Depois de nós o que acontecerá se ele nunca viveu separado? Se ele mora em um lar, quem se ocupará dele, quem o protegerá, quem o defenderá em nosso lugar? Qualquer que seja o grau de deficiência, todos os nossos adultos precisam de apoio, curadoria dos seus bens e, sobretudo, curatela de sua pessoa, mesmo quando não oficializada pela justiça. Tal função, em geral exercida pelos pais, passará a ser exercida por quem depois deles?
“Durante muito tempo essa substituição dos pais pode ser assumida pelos irmãos e irmãs. Se isso ainda acontece em certos povos e em determinadas famílias, é preciso reconhecer que a tendência é que se acabe. Seja como for, a evolução das formas de vida, e as condições de moradia não permitem mais conceber, como conseqüência lógica,a presença do órfão na casa de irmãos e irmãs. Quando muito, quando eles quiserem, e quando puderem, tomarão o lugar dos pais, mas ainda assim seria necessário que houvesse locais para acolher o irmão ou irmã deficiente, e que a proximidade dos lares permitisse o exercício dessa função de maneira adequada. E, na falta desse revezamento familiar, quem nos substituirá? Outros parentes, os amigos? Soluções possíveis de serem consideradas mas bastante problemáticas.
Ainda uma vez, a resposta parece ser a solução associativa. Da mesma maneira que não poderíamos ter resolvido os problemas colocados por esse filho sem o apoio de nossas associações, da mesma maneira pensamos que é através da forma associativa, o que em nosso país chamamos de Associações Tutelares, que poderemos conseguir uma solução que substitua a proteção dos pais da pessoa deficiente e responda, assim, ao questionamento dos mesmos.
Há os que pensam que os diretores e funcionários dos estabelecimentos poderiam fazê-lo. Qualquer que seja a qualidade material, de amizade, mesmo afetuosa dessas intervenções, os pais são levados a fazer observações e reclamações, tentando modificar situações. Há os que consideram que nossas associações ou outras entidades filantrópicas poderiam assumir esse papel; não se pode esquecer que pode haver entre seus dirigentes conflito entre
responsabilidades morais e responsabilidades econômicas, conflito esse que pode prejudicar os beneficiários. O equilíbrio de um grupo, a defesa dos indivíduos, é sempre baseada na separação dos poderes, e, nesse caso mais do que em qualquer outro, ela se faz necessária. As Associações Tutelares, independentes e não submetidas à pressão dos poderes públicos, são uma resposta a esse imperativo, uma solução relativa à nossa substituição e à nossa inquietação.
Mais uma vez chegamos ao ponto que nos reúne aqui: as associações pró pessoas com deficiência intelectual. É a solução coletiva, voluntária, amiga, afetuosa, em relação às pessoas aqui consideradas e aos seus pais que, sozinhos, mão podem fazer face às dificuldades. Se tivéssemos de recomeçar tudo de novo, acredito que chegaríamos à mesma resposta.
“Tenho consciência de que a minha abordagem não foi conclusiva, que muitos aspectos ficaram na sombra, que, de maneira particular, por falta de conhecimento, não abordei os problemas dos pais idosos que vivem em países cuja civilização é diferente da nossa. Peço desculpas e não duvido que nossas discussões vão aumentar os debates, aprofundar nossos conhecimentos, e nos enriquecer numa troca de experiências. Tenho a certeza de que nossas reflexões desembocarão em projetos, em inovações, que acalmarão nossas angústias de pais idosos e garantirão para nossos filhos a manutenção da qualidade de vida a que eles têm direito, qualidade que nós, como pais, tentamos manter e defender enquanto vivermos.
Observação: este texto foi distribuído durante o Encontro sobre Residências – Pessoas Idosas com Deficiência Intelectual – realizado em 8 de março de 1991 na APAE de S.Paulo por iniciativa da Coordenadoria de Eventos da Federação Nacional das APAEs.sob a liderança da amiga e companheira Alda Moreira Estrázulas, líder incontestável das APAEs do Estado de S.Paulo,considerada, além disso, uma líder de renome mundial na área.