O romance americano O Som e a Fúria, de William Faulkner, começa com um longo capítulo, intitulado “7 de abril de 1928”, totalmente narrado em primeira pessoa por um personagem de nome Benjy Compson. No primeiro parágrafo, Benjy está se escondendo atrás de uma cerca enquanto observa pessoas entretidas pelo estranho ritual de “bater” e “arrancar uma bandeira”. Benjy não sabe que os outros jogam golfe nem diz isso porque é autista. Ele sofre preconceito da própria família, algo que transparece em situações tragicômicas narradas por ele próprio. O Som e a Fúria é considerado um dos maiores romances do século XX.
No mês passado, o programa Comédia MTV exibiu um esquete chamado Casa dos Autistas. Em obséquio aos leitores deste artigo, acho importante dizer que fui um dos redatores do Comédia MTV durante todo o ano de 2010. Ainda naquele ano, Casa dos Autistas era discutido em reuniões de criação de roteiro. O esquete foi descartado incontáveis vezes – e, lembro-me bem, Marcelo Adnet, astro do programa, era terminantemente contra sua execução – porque não havia nele qualquer graça além do trocadilho do nome. Eu fui contra. Pelo que me lembro, todos eram contra – era apenas uma ideia boba que ninguém achou que poderia vingar.
Mas o quadro foi produzido e foi ao ar. Confesso que não consegui ver mais do que dois minutos. Os atores, interpretando jovens com autismo, gritam, babam, olham para as paredes, fazem caras e bocas estranhas. Tudo dolorosamente sem graça. Meus ex-colegas perceberam o erro e se desculparam publicamente.
A diferença entre O Som e a Fúria e Casa dos Autistas, a meu ver, é uma só: a compaixão. A sensibilidade de Faulkner, um estilista torturado, faltou ao redator que assina o texto final do esquete brasileiro. Quando não se sente compaixão pelo sofrimento alheio, quando o artista não tem a decência de se alinhar, ombro a ombro, com o sujeito de sua criação – quando isso acontece, não há esperança. E isso é especialmente importante para o humor.
Há um decoro que deve permear toda e qualquer comunicação de massa: não se bate em quem está caído. Não se bate em minorias, portadores de doenças, pessoas que sofrem. Por quê? Porque não se faz. Simplesmente, não se faz.
Não concordo com as mudanças impostas pelo “politicamente correto” à comunicação – censura sempre será censura. Mas insultar as pessoas não é se colocar contra o politicamente correto: é pura e simples grosseria, falta de civilidade. E nada melhor para insultar do que uma piada sem graça.
O caso do Comédia MTV recebeu, talvez, mais cobertura do que deveria devido à ascensão fulminante de Marcelo Adnet, um dos maiores talentos da televisão em muitos anos. Não foi, no entanto, a primeira vez que um humorista brasileiro da chamada “nova geração” – jovens que surgiram na internet ou nos palcos de stand-up e cujo mote costuma girar em torno da crítica social – virou vidraça. Dois nomes associados ao programa CQC, da Band, vêm à mente sempre que se pensa em humorista excessivamente polêmico: Rafinha Bastos e Danilo Gentili, dois franco-atiradores cujo lastro é uma popularidade acachapante no Twitter. Rafinha chegou a ser ungido, de forma um tanto quanto canhestra, a pessoa mais influente do mundo no Twitter. (Quem primeiro lhe rendeu esta honra foi um blog do jornal New York Times. Infelizmente, os jornalistas brasileiros não se preocuparam em verificar que a fonte do tal ranking é um website dinâmico e que, quando as reportagens foram publicadas, Rafinha sequer figurava no top 10 dos influentes).
Rafinha e Gentili afirmam se orgulhar de dizer o que pensam. Em entrevista recente, Rafinha faz questão de ressaltar que a falta de qualquer forma de freio entre sua mente criativa e a caixa de texto que publica seus tuítes é o segredo de seu sucesso.
Outro ponto invocado pelos jovens humoristas é dizer que os Trapalhões “estavam à frente de seu tempo” porque faziam piadas com nordestinos, gays e negros. No ano passado, entrevistei Renato Aragão. Ele me disse que recusa a pecha de “inovador” e que nada do que foi feito por eles era pensado. Renato diz que eles eram como “garotos de colégio” trocando ofensas com a intimidade de amigos. Renato chamava Mussum de crioulo cachaceiro e recebia de volta a alcunha de “cabeça chata”. Aquilo era engraçado, mas seria impossível hoje em dia. Renato sabe disso. Os Trapalhões faziam as piadas que estavam no ar, que eram feitas nas salas de estar dos brasileiros. As piadas funcionavam pela graça e ingenuidade dos atores. Fato é: o humor preconceituoso dos Trapalhões não só estava atrás de seu tempo como era um símbolo do atraso da sociedade brasileira.
Rafinha, um dos que afirma que os Trapalhões estava à frente de seu tempo, diz em seu stand-up que mulheres feias deveriam agradecer ao estuprador caso um dia sofram violência sexual. No dia das Mães, escreveu no Twitter: “Ae órfãos! Dia triste hj, hein?”. Foi caçado a pauladas como uma ratazana prenha, como escrevia Nelson Rodrigues. Seu colega de CQC, Danilo Gentili, escreveu no Twitter, dias depois, um comentário sobre a suposta retirada de uma estação do metrô do bairro paulistano de classe alta de Higienópolis: “Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez q chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. Gentili apagou o tuíte algum tempo depois da publicação, supostamente devido à repercussão ruim.
Cito O Som e a Fúria no começo do artigo – como poderia ter citado Rain Man, South Park, Family Guy – para que se faça uma pequena reflexão sobre a diferença na forma como os humoristas contemporâneos lidam com assuntos delicados – não apenas estes citados no texto, mas praticamente todos eles. O que se faz no Brasil, em grande parte, é pastiche dos grandes provocadores americanos. Há, em algum lugar na mente deles a certeza de que tudo o que choca é engraçado e, se não engraçado, um importante agente pela atualização dos costumes da sociedade. Como se fazer piadas controversas fosse o único jeito garantido de romper com o status quo, como se estivessem apontando o dedo para a “ferida”.
Quando Gentili e Rafinha advogam em causa própria – ou quando são defendidos por colegas –, é muito comum usarem o argumento de que “se uma piada é engraçada, ela se justifica”. Essa discussão não existe. Em suma, porque ninguém é capaz de dizer se uma piada é engraçada ou não. A frase clássica do escritor americano E. B. White diz tudo: “Explicar uma piada é como dissecar um sapo. Você o entende melhor, mas o sapo morre no processo”. Há pouco mais de um mês, os quatro humoristas de maior sucesso da língua inglesa fizeram uma mesa redonda na TV só para tentar explicar o que é engraçado e por quê. Jerry Seinfeld, Ricky Gervais, Chris Rock e Louis C.K. passam os 40 minutos do programa Talking Funny discutindo e não chegam a conclusão alguma.
Outra linha de defesa é afirmar que se trata de humor “nonsense”. Quando o que você diz agride frontalmente alguém, não dá para dizer que se trata de algo “sem sentido”. Ao impor cegamente uma piada, os auto-intitulados humoristas progressistas acabam ficando à direita de Genghis Khan.
É a falta de compaixão – e o excesso de auto-confiança –, na minha opinião, que gera essas anomalias. A compaixão faz o humorista tomar o caminho mais longo para chegar ao comentário correto sobre um assunto atual. Nada é mais importante para manter a sanidade de qualquer discussão do que o humor crítico, incisivo, mordaz. A turma do Comédia MTV cometeu esse deslize, mas tenho certeza que sabem fazer humor levando em conta as suscetibilidades alheias. Mas sinto que ainda falta a Rafinha e Gentili mostrar que são humoristas viáveis. Só precisam se colocar na mesma altura que o resto de nós.
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