O Tribunal da Cidadania viveu uma tarde especial nesta quarta-feira (14). Pela primeira vez em seus 21 anos de existência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) presenciou uma defesa da tribuna proferida por um advogado da União com deficiência visual. O protagonista do evento inédito foi Cláudio de Castro Panoeiro, 37 anos, que estreou em plenário frente aos ministros da Primeira Seção do STJ.
“Há cinco anos que estou esperando este momento. Mas estou tranquilo, estou preparado”, disse o advogado pouco antes do início da sessão Panoeiro faz parte dos quadros da Advocacia-Geral da União desde 2005. Por sua atuação destacada como coordenador do Grupo de Defesa do Patrimônio e Probidade da Procuradoria Regional da União da 2ª Região, no Rio de Janeiro, ganhou a admiração e respeito dos colegas, que articularam a estreia de Panoeiro na tribuna da corte superior como forma de homenageá-lo.
Esforço e dedicação
Natural da cidade de Três Rios, a 121 km do Rio de Janeiro (RJ), Panoeiro nasceu com uma doença degenerativa da retina, a retinose pigmentar, que não é curável nem mesmo com transplante. A enfermidade se agravou quando tinha 11 anos. Foi quando iniciou os estudos da linguagem em Braile. “Eu já tinha sido alfabetizado, então aprendi todos os símbolos em 21 dias”, conta.
Seus estudos no Ensino Fundamental foram concluídos no Instituto Benjamin Constant, entidade especializada na educação de cegos, na Zona Sul do Rio. Já o Ensino Médio foi cursado numa instituição não especializada em deficientes, o Colégio Pedro II, escola pública federal. “Eu contava com a ajuda dos colegas que liam os conteúdos para mim. Lá ainda não existiam materiais voltados para cegos”, lembra.
Segundo ele, a escolha pelo Direito foi pragmática. “Por causa da deficiência não tinha como optar por carreiras como a Medicina, a Engenharia ou a Arquitetura”. Panoeiro ingressou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se beneficiou da criação do programa Dos Vox, por meio do qual um sintetizador de voz “lia” o conteúdo de textos acadêmicos e processos judiciais.
Antes mesmo de se graduar, Panoeiro ingressou no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) como técnico. Já como bacharel, prestou novo concurso e se tornou analista judiciário. Especialista em Direito Público, conseguiu a aprovação no concurso para a AGU, em 2005. “Ele sempre foi muito dedicado. Não deixou de ser um aluno nota dez”, conta a advogada Jeane Esteves, com quem Panoeiro é casado.
A defesa
Às 14h24, o presidente da Primeira Seção, ministro Teori Zavascki, chamou o julgamento do mandado de segurança 14.641. Expectativa entre os cerca de 30 colegas advogados e procuradores públicos que foram prestigiar a estreia de Panoeiro. A ministra Eliana Calmon leu o relatório sobre o pedido da empresa São Paulo Alpargatas S.A. para impugnar o processo administrativo movido pela Câmara de Comércio Exterior (Camex) que resultou na imposição de medida antidumping contra a companhia.
A empresa alegou a existência de três vícios processuais no procedimento administrativo que resultou na sobretaxação em US$ 12,47 de cada par de sapatos importados da China. Entre os vícios apontados, estão a falta de legitimidade da Associação Brasileira da Indústria de Calçados (ABI), que apresentou a petição denunciando o dumping à Camex, e o cerceamento do direito de defesa durante o processo administrativo. Eliana Calmon já havia deferido liminar em favor da Alpargatas, que depositou em juízo a taxação imposta para ter liberada uma carga de produtos retidos no Porto de Santos.
Panoeiro, que desceu à tribuna com o auxílio da esposa Jeane, falou aos magistrados logo após a advogada da empresa. Para ele, a Alpargatas não poderia falar em falta de legitimidade da ABI Calçados, afinal “a própria impetrante faz parte dos quadros da associação”. O advogado defendeu o procedimento administrativo, que, segundo ele, teve o objetivo de evitar maiores prejuízos ao mercado interno de calçados no país. “O combate ao dumping é um compromisso internacional do Brasil”, afirmou, lembrando os acordos firmados nas reuniões da Organização Mundial do Comércio.
Sem frustração
Após as defesas, a ministra Eliana Calmon leu seu voto, que confirmou seu entendimento ao conceder a liminar. Para a relatora, a Camex não respeitou o direito processual de defesa da Alpargatas porque, em sua decisão, utilizou apenas dados fornecidos pela ABI Calçados. Também entendeu que os prazos para consulta das evidências não respeitaram os parâmetros consagrados pela legislação. “A impetrante só teve acesso a informações fundamentais meses após o início da investigação”, afirmou.
Eliana Calmon ressaltou que sua decisão não traz prejuízos ao mérito do procedimento administrativo, “mas apenas impugna o processo”, já que “transpareceu nítidas” as irregularidades processuais. O voto seguinte seria do ministro Castro Meira, que decidiu pedir vista aos autos para poder estudar com mais profundidade a questão.
Mesmo com voto contrário à demanda de Panoeiro, a ministra Eliana Calmon fez questão de destacar o ineditismo e a relevância da defesa proferida por um advogado cego. “Foi um momento histórico para os tribunais superiores do país”, afirmou. O presidente da Seção, ministro Teori Albino Zavascki, também elogiou a defesa proferida por Panoeiro.
O voto contrário da relatora não abateu o advogado, que foi muito cumprimentado pelos colegas na saída do plenário. “É assim mesmo, é da profissão. Mas eu poderia ter me saído melhor”, lamentou, mas sem perder o sorriso diante do carinho dos amigos, da esposa e da mãe. Panoeiro admitiu que ficou um pouco nervoso e “com a boca seca”. Mas parece ter gostado da experiência, que deve ser apenas a primeira de muitas defesas em favor da União.
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