Em 2014, quando todas as atenções do mundo estiverem voltadas para o Brasil, sede da Copa do Mundo, o impossível acontecerá. Um jovem deficiente físico, hoje incapaz de andar, cruzará o gramado sobre as próprias pernas e sem auxílio de ninguém rumo ao círculo central, onde dará, literalmente, o pontapé inicial da partida. Parece cena de filme, mas faz parte dos planos do médico e cientista paulistano Miguel Nicolelis, cujas pesquisas sobre a interação entre corpo humano e máquina o projetam como grande nome da ciência contemporânea. E não é só. Seus estudos apontam para um futuro fascinante e cheio de esperança, no qual a combinação entre homem e tecnologia se desdobra infinitamente em possibilidades. Por meio do pensamento, as pessoas poderão não apenas recuperar seus movimentos, mas também executar tarefas cotidianas, como dirigir ou usar computador, e até mesmo interagir com pensamentos, emoções e recordações de pessoas que já morreram, pois tudo isso estará gravado num banco de memória.
Céticos e interessados terão a chance de conversar com Miguel hoje à noite, no Teatro Ney Soares (UniBH), em Belo Horizonte, onde ele lançará o livro Muito além do nosso eu (Companhia das Letras) e conversará com o público – o evento tem entrada franca e faz parte do projeto Sempre um papo. Na obra, o autor, que faz questão de escrever de maneira simples e clara até o final das pouco mais de 500 páginas, apresenta, contextualiza e desenvolve suas pesquisas na área, conduzindo o leitor por uma contagiante aventura com destino às fronteiras do conhecimento.
“A neurociência pode ser entendida por todo mundo, basta usar a linguagem adequada. É importante que as pessoas entendam o que está acontecendo. Nossas vidas mudarão dramaticamente e esse processo já começou. O que parece uma área abstrata e distante do cotidiano vai alterar muito as nossas vidas nas próximas décadas. Essa é a razão pela qual participo de eventos como o de hoje. Sem dúvida, estamos só arranhando a ponta do iceberg. Basicamente, estamos acelerando o processo e mostrando que possibilidades que pareciam abstratas estão se tornando concretas”, afirma Miguel, por telefone, dos Estados Unidos, onde mora.
Ele se formou em medicina na Universidade de São Paulo em 1984 e quatro anos depois tornou-se doutor pela mesma instituição. Em 1989, mudou-se para os Estados Unidos para estudar a fisiologia por trás das interações entre neurônios e desde 1994 comanda laboratório de neuroengenharia na Universidade Duke, em Durham. Integra academias de ciência no Brasil e exterior e hoje atua também no Rio Grande do Norte, onde é diretor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, entidade da qual é também fundador, cuja missão é estimular a pesquisa científica e o desenvolvimento na região.
Burocracia emperra o talento
Devolver os movimentos aos que perderam o comando sobre braços e pernas é um sonho que está prestes a se tornar realidade por meio de uma das linhas de pesquisa do médico e pesquisador paulistano Miguel Nicolelis. “Isso é algo factível e não é só a gente que acredita nisso. Estados Unidos e Europa também apostam nisso”, revela.
Nesse caso, o deficiente físico reassumirá o domínio dos próprios movimentos com o que Miguel chama de veste robótica: trata-se de uma espécie de exoesqueleto de corpo inteiro, encaixado no usuário e comandado por ele por meio dos pensamentos motores voluntários. Microeletrodos implantados no cérebro registrarão continuamente a atividade elétrica dos neurônios e transmitirão essas informações (via tecnologia sem fio) para unidade de processamento acoplada ao exoesqueleto, que “traduzirá” o comando em movimento.
“Estamos praticamente construindo uma cidade dedicada ao cérebro em Natal, que será modelo para todo o Brasil. Nenhum outro projeto científico brasileiro tem caráter social como o nosso, nem despertou tanto interesse e apoio internacional”, diz ele. Cultura científica em se tratando de neurociência, na visão dele, não falta no país.
No entanto, completa, há carência de dinheiro e também do que chama de “estrutura oficial”: “Sem isso não há como libertar o potencial criativo dos neurocientistas. É muita burocracia, é assustador. Parece que a gente quer construir uma hidrelétrica. O tempo e a energia que gastamos para lutar contra o sistema corroem qualquer iniciativa. A legislação e os processos são de décadas atrás. É preciso mudar já”, propõe enfaticamente Miguel Nicolelis.
É possível pensar na transferência de “dados” de nosso cérebro para outros meios?
Já fazemos isso de maneira limitada, mas no futuro remoto podemos pensar em registrar pensamentos humanos em algum tipo de meio. Ao término da vida, poderá haver um documento, um relato em primeira pessoa, obtido direto do pensamento, como registro de um legado de vida. Já dá para imaginar isso. Vai demorar, mas não é impossível.
Você é médico e trabalha com pesquisas que envolvem física e química. No campo da neurociência as disciplinas tradicionais deixam de ter sentido separadamente?
A neurociência é uma área de convergência multidisciplinar. Talvez seja a maior área de convergência da atualidade. As questões fundamentais da neurociência requerem isso e é justamente essa característica que a faz atraente hoje. Atualmente, nos Estados Unidos, há grande número de físicos que trabalham com neurociência e poucos conseguem emprego nas áreas tradicionais da física.
A relação entre arte e neurociência é instigante, seja pela explicação da beleza pelos circuitos neuronais, seja pela inspiração artística que brota das novas ciências. Como vê a relação entre arte e ciência?
A ciência é uma manifestação artística. Os grandes cientistas se expressam artisticamente e o processo de criação deles tem um quê artístico. As manifestações humanas são muito próximas, as abordagens é que mudam. Tanto é que o pai da neurociência moderna, Santiago Ramón y Cajal, era desenhista. Ele fez ilustrações do sistema nervoso central que ninguém conseguiu reproduzir, e isso, mais do que a prosa dele, foi o que despertou interesse na época.
Muito além do nosso eu
Lançamento do livro de Miguel Nicolelis. Hoje, às 19h30, no Teatro Ney Soares (UniBH), Rua Diamantina, 463, Lagoinha, (31) 3319-9238, dentro do projeto Sempre um papo.