A grande questão, talvez a única, para a inclusão social das pessoas com deficiência se expressa numa inter-relação perversa entre a sociedade e o indivíduo que tem a deficiência, diretamente. Tanto no aspecto coletivo como no individual, ela é cultural e remonta aos primórdios da humanidade, tendo se configurado no que muitos identificam erradamente como parte da “natureza humana”.
Temos, portanto, em um aspecto, a manifestação do preconceito e da discriminação como fenômeno cultural. Por outro lado, e igualmente como fenômeno cultural, encontra-se a baixa auto-estima e a autocomiseração.
Quando uma pessoa nasce com deficiência, desde o início é exercida uma pressão comportamental sobre ela, em maior ou menor grau, que provoca sua acomodação, aparentemente de maneira natural, de acordo com as restrições que lhe são impostas, geralmente tornando-a desajustada, também em maior ou menor grau, seja pela revolta ou pela anulação.
Quando a deficiência acontece no decorrer da vida, por doença ou acidente, a pressão comportamental, tanto da sociedade e da família como da própria pessoa, quase sempre é marcada pela maior intensidade, de um lado traduzindo-se em pena e compaixão, e de outro lado, da parte do indivíduo que se tornou deficiente, em sentimentos de injustiça e derrota.
Ora, a grande conquista das pessoas com deficiência foi sua própria superação, com a consciência do direito à igualdade de oportunidades e ao pleno exercício da cidadania, tomando elas mesmas a iniciativa do seu processo de inclusão social, isso tendo sido sempre motivo de grande orgulho.
Porque aceitar, nessa altura do campeonato, ser tuteladas?
E o que é o documento legal do Estatuto da Pessoa com Deficiência senão um instrumento de tutela de incapazes? Os Estatutos da criança e do adolescente e o do idoso protegem pessoas que, pela idade ou condição física, são indefesas e não têm capacidade de lutar pelos seus direitos.
As pessoas com deficiência já têm suas leis, que resguardam seus direitos. Se elas têm falhas, só é preciso emendá-las. Se não são cumpridas, não será a aceitação do instrumento paternalista do Estatuto que fará com que sejam (o Aurélio ensina que paternalismo é, “em política, tendência a dissimular o excesso de autoridade sob a forma de proteção”).
O que é preciso é cobrar do poder Executivo o cumprimento dessas leis.
Afinal, diferentemente das crianças, adolescentes e idosos, o que também foram, são ou serão, jornalistas muletantes, operadores de telemarketing cegos, advogados cadeirantes, eletricistas surdos, engenheiros tetraplégicos ou mesmo desportistas autistas, são perfeitamente capazes de lutar pelos seus direitos, afirmá-los, e conquistar a plena cidadania.
Combatemos a discriminação e o preconceito que existe em relação às pessoas com deficiência na sociedade. Como podemos cair em contradição e levar essas pessoas à autodiscriminação defendendo este documento legal que bem poderia ser chamado de “Estatuto do coitadinho”?
(Este texto foi publicado pela primeira vez em abril de 2006, quando a proposta de um Estatuto da Pessoa com Deficiência estava no Senado. Absurdamente aprovada lá, agora ela tramita na Câmara Federal, o que mantém a atualidade do que está dito aqui)